sexta-feira, 21 de julho de 2017

Luiz Sá - Entrevista - 1978

Publicada na revista Traço, nº 2 em abril de 1979.

DEPOIMENTO

LUIZ SÁ - VOCÊ SE LEMBRA?

Henri Bon: Luiz, ficha completa.

Luiz Sá: Meu nome completo é Luiz Sá de Araújo. Nasci em 28 de setembro de 1907, dia do Ventre Livre, em Fortaleza, Ceará, que na época tinha menos de cem mil habitantes. Meu avô também se chamava Luiz Sá, era professor de desenho na escola normal e retratista muito bom. Não o conheci, mas havia um retrato seu em minha casa, de próprio punho. Eu perguntava à minha mãe se eram parecidos, ela dizia "meu filho, é o seu avô escrito". De fato era um grande desenhista.

Sou bisneto de índia pura chamada Main-chã-cha que morreu com 99 anos e me dava um grande pavor; já imaginou o que é isso, uma índia de 99 anos! Admito que minha avó tenha casado com algum mestiço de origem holandesa, já que temos na família primos morenos e loiros, tão claros que nós os chamávamos de "bodes loiros". Por isso que eu acho essa divergência de raças uma bobagem.

Cartazete educativo - 1953


Ildo: E sua família, era muito grande?

Luiz Sá: Eu tinha apenas um irmão, mas havia uma tia com 11 filhos e outra com cinco. Acho que éramos ao todo uns vinte primos.

Henri Bon: Quantos dessa turma, além de você, seguiram o desenho?

Luiz Sá: Ninguém. Tinha uma prima que desenhava muito bem, mas não era criativa. A coisa mais importante em nossa casa lá no Ceará, era a sala de jantar com uma mesa do tamanho de um bonde. Mamãe colocava todos os primos três vezes por semana para desenhar modelos, nesta mesa. Enquanto eles copiavam, eu desenhava Tom Mix e outros bichos e minha mãe dizia "voc~e não vai dar para nada, menino". Naquele tempo a caricatura era obscura, não havia no Norte. Além disso, eu havia nascido caricaturista e modificava os modelos, desenhava muito nas calçadas e de vez em quando alguém passava dizendo - "Esse menino está se perdendo aqui, vai para o Rio, menino".

Floriano: E você acabou indo...

Luiz Sá: Com 21 anos, final de 28...

Floriano: Para desenhar?

Luiz Sá: Que nada, era a última coisa que eu pensava. Vim para ganhar a vida. Tínhamos uma grande fazenda lá no Ceará, seis léguas de largura, mas na seca de 17 morria gente até em Fortaleza e minha mãe teve de vendê-la por qualquer tostão. Quando vim pro Rio, a situação não era boa. Desembarquei em princípio de 29, tava era... pasei foi miséria, acabei parando no Hospital de Gamboa com icterícia por excesso de álcool. Sabe como é, a gente sempre encontra alguém para pagar uma cana... eu ia bebendo.

Lá conheci uma freira, já idosa, que passou a gostar muito de mim. Não tinha visita nem carta e a distração era a conversa. Um dia ela me passa chorando pelo corredor e eu perguntei ao enfermeiro o que havia acontecido. Ele me disse "era um santo que quebrou". Fui lá, peguei o santo e fui ajeitá-lo. Depois encarnei, como dizia a minha mãe, "Santo não se pinta, se encarna".

Aí não tive mais sossego de tanto santo para restaurar que apareceu.

Aconteceu que o vigia da noite voltou para o exército, era época da revolução de 30, eu já estava bom e assumi o seu lugar. Não podia dormir, rapaz. Ganhava 60 mil réis e para passar o tempo ia desenhando. Fiz então uns quadros sobre a História do Brasil.

Floriano: Você já havia tido algum contato com a imprensa em sua terra?

Luiz Sá: Andei fazendo alguma coisa, muito raramente para o Jornal do Commercio, no ano de 28. Ainda, no Liceu, rabiscava um jornalzinho à mão, só um exemplar, que ía passando entre os alunos.

Henri Bon: Voltando ao hospital...

Luiz Sá: Fiz mais quinze quadros, mas o traço ainda não era este, depois aprimorei. Um dia mostrei a um pintor cearense, o Pacheco de Queiroz, que me disse "Ih, Luiz, isso é muito bom" e levou para o Adolfo Aizen. O Malho naquela época estava fechado pela revolução de 30 e eles haviam lançado outra revista com o nome de "Eu Vi". Bom, o Adolfo Aizen me procurou e disse "pago 10 mil réis por cada desenho, publico e devolvo o original".

Mais tarde ele me deu a ideia de criar no Tico-Tico uma história infantil. Eu publiquei então o Reco-Reco, Bolão e Azeitona de 1931 até 1960 quando fecharam a revista.

Tinha outros personagens que surgiram mais tarde, Maria Fumaça e Pinga Fogo, o detetive desastrado, para a Cirandinha, e Faísca, o papagaio.

Ildo: Você foi o primeiro brasileiro a fazer desenho animado. Conta essa história!

Luiz Sá: Eu desenho muito bem letras e por isso fazia as apresentações dos jornais cinematográficos. O rapaz com quem eu trabalhava me disse um dia "Ô Luiz, por que você não faz um desenho animado?".

Eu havia feito antes uns comerciais de cama patente em que o personagem jogava madeira por um buraco em uma grande máquina e a cama saía completa no outro lado. Fiz outro de um jogador de futebol correndo com a bola, de repente ele parava, com a mão na cabeça, chegava o massagista com um comprimido, ele tomava, continuava correndo e marcava o gol. Fiz um bocado desses. Resolvi então criar um maior, eram Aventuras de Virgolino, isso em 39, acabei deixando o filme em seu laboratório fechado pela guerra, onde estavam vendendo celulose. E o meu desenho lavado com ácido, acabou vendido como sucata (risos de indignação).

O segundo, vendi para o dono de uma loja de projetores que acabou cortando-o, oferecendo os pedacinhos como brinde a quem comprasse a máquina (mais risos de indignação). Há uns três anos atrás o Parrot localizou uns pedaços, utilizando-os em um curta metragem que fizeram sobre mim.

Ildo: Como era o processo, você fazia somente o desenho?

Luiz Sá: Não, eu fazia tudo, desenhos, animação, cores, até o cenário de fundo.

Ildo: Na década de 40 o Disney resolveu aparecer no Brasil em visita de "boa vontade", época em que criou o Zé Carioca. Ele não te tocou para participar do grupo de criação?

Luiz Sá: Não, Eu até levei o meu segundo desenho animado para uma reunião que o Disney havia feito aos artistas nacionais, mas o diretor do DIP impediu que eu mostrasse, dizendo que era muito pobre. É claro que era pobre, foi feito para mostrar o esforço de um sujeito que tinha feito sozinho, enquanto no exterior havia uma equipe para isto.

Ildo: Porque estava previsto, ou se pensava, que os artistas nacionais desenhariam o Zé Carioca...

Luiz Sá: O problema é que o Disney impedia a criação e todos os seus auxiliares tinham que desenhar igualzinho.

Davilson: Eu vou te explicar porque o diretor do DIP achou pobre: na época o Disney estava começando e não admitia concorrentes, haja visto o Latini (único cara que conseguiu fazer um desenho animado de longa-metragem no Brasil nos idos de 50) que foi boicotado porque o Disney estava precisando de mercado.

Henri Bon: A gente tem que considerar também que a vinda do Disney ao Brasil era uma jogada para ganhar o mercado latino-americano, já que o europeu estava fechado pela guerra. Portanto o Zé Carioca, uma vez perdida a utilidade, foi relegado a um segundo plano de onde jamais saiu. No fundo, era uma jogada financeira Disney-Rockfeller.

Henri Bon: Mas o Faísca é anterior ao Zé Carioca...

Luiz Sá: Sim, e tinha ainda um papagaio anterior, o Louro, que formava o trio com o Totó, o cachorrinho e Catita, o rato. Acontece que ficamos muito tempo no baú, já não dava para concorrer com os americanos pelo baixo preço.

Ildo: Na verdade, se alguém hoje tentar fazer uma animação em longa-metragem no Brasil, vai ser tão pobre quanto a trinta anos atrás. Um exemplo disso é o Piconzé, que levou dois anos (na verdade quatro) para ser realizado, feito no maior improviso...

Duda: Agora, Luiz, sobre exposições...

Luiz Sá: Andei fazendo umas e outras (ao fundo a voz do Davilson pedindo limão). A primeira foi logo em 31 sobre a história do Brasil, chamava-se "Galeria de quadros célebres da História do Brasil ao estilo moderno". Depois acabei fazendo outra, já em 34, levando para o nordeste, eram quadros regionais. Em 47 expus em São Paulo, assuntos de esporte e somente em 65 voltei a expor.

"DISNEY ATRAPALHAVA A CRIAÇÃO; TODOS TINHAM QUE DESENHAR IGUALZINHO"

March: E quanto a outras atividades...

Luiz Sá: Fiz dois livros somente com histórias de Reco-Reco, Bolão e Azeitona. Eles não eram assim. Costumo dizer que a gente sempre desenha melhor com o passar do tempo. Fui aperfeiçoando-me. O Bolão usava chapéu, tirei, acabei colocando uns fios de cabelo em sua careca.

Trabalhei também para o Serviço Nacional de Educação Sanitária, onde publicava aqueles almanaques de saúde. Um dia aparece um diretor querendo me exigir horário fixo, gritando comigo. Então eu lhe disse "Sou mais novo que o senhor e posso gritar mais alto" e dei um berro. Depois voltei para casa apresentando minha demissão. Ele escreveu uma carta ao Ministério dizendo que não poderia me dispensar, pelo esforço de guerra, mas não era nada disso. Acabei arranjando um pistolão para ser demitido. E fui para o cinema.

Floriano: Jornal da Tela?

Luiz Sá: E outros. Eu fazia uma charge sobre a notícia. Recebia a encomenda que às vezes aprontavam em um fim de semana para entregar na segunda-feira. Sobre esporte era ainda fácil, as sociais davam mais trabalho. Um dia o Luiz Severiano Ribeiro recebe uma carta de um industrial paulista, nem sei quem é, sem um pingo de senso de humor, reclamando de um desenho que eu havia feito de um cara olhando com uma lente para um caroço de feijão no fundo de um prato. Esta charge ilustra uma reportagem sobre o banquete de trezentos talheres que ele havia dado.

Ildo: E quanto à questão do direito autoral. Como se fazia naquela época?

Luiz Sá: Não havia isso. Era pelo desenho, a gente recebia na hora sem qualquer outro direito.

Eu estou lembrando agora de um episódio que me deu alguns trocados: eu havia desenhado na série "História do Brasil" um quadro sobre a fundação do Rio de Janeiro, em que, num prédio em construção, havia uma placa AQUI HÁ OTIS. Não fiz isso com maldade, mas o fato é que um diretor da empresa acabou gostando, comprou o quadro por cem mil réis e o distribuiu pelo mundo.

Ildo: Até alguns anos a estação das barcas mantinha algumas ilustrações suas. Que fim levaram aqueles quadros?

Luiz Sá: Não sei. Foram talvez estragados pelo tempo. Ainda me lembro que um capitão teve a idéia de substituí-los periodicamente por outros que eu iria fazendo. Mas sabe como é, foi ele que acabou substituindo a idéia engavetada e nunca mais falou no assunto.

Henri Bon: E sobre uns slides educativos que você andou fazendo?

Luiz Sá: Vim pra São Gonçalo há 8 anos e depois de velho acabei tuberculoso, ficando internado mais de uma ano. Aí o Dr. Ataídes me pediu para fazer uns desenhos sobre doenças e suas causas. Eu fiz uns cinquenta, mas só tenho metade comigo. Quem tem a série completa é o Hospital Heitor Carrilho.

March: Quais os seus últimos trabalhos?

Luiz Sá: Bem, eu fui procurado por algumas pessoas ligadas ao partido do Governo para fazer umas ilustrações em propaganda eleitoral. Felizmente trabalho remunerado. Tenho trabalhado também desde abril em alguns álbuns que quero deixar para minha família.

Ildo: Luiz, quando você parou e por que?

Luiz Sá: Quando fechou O Malho em 1960. Bem, eu ainda continuei no cinema até 65, fazendo apresentações para filmes e telejornais, quando trabalhei com Reginaldo Farias e Jece Valadão. Depois veio o Castelo com essa história de retirar a obrigatoriedade de apresentação do curta-metragem. O cinema pagava razoavelmente bem e de uma hora para outra perdi o emprego. Foi-se o meu padrão de vida que diga-se de passagem era muito bom.

Andei por 1966 fazendo alguns desenhos de apresentação para o programa de Heron Domingues na TV Continental. E depois, nessa época eu morava em Paquetá, e quem mora em Paquetá não quer nada com o trabalho, sabe como é que é...

Atualmente Luiz Sá, afastado de toda atividade profissional, repousa dos anos de luta recolhido em uma pequena reidência em São Gonçalo, que de modo algum faz juz à genialidade de quem foi o pioneiro do desenho animado no Brasil.


Fomos encontrá-lo às 10:43h do dia dois de fevereiro de 1978. Presente Henri Bon, Ildo Nascimento, Levy Szmaragd, Marcus César, Duda, march, Fernando Nunes, Rossini, Floriano, Davilson e Júlio César Valadão Diniz.

Tomamos de assalto a casa, munidos de cachaça, violão, filmadora, gravadores e máquinas fotográficas, com o objetivo - dentro de nossas limitações - de traçar um retrospecto de sua vida artística, que atravessou quatro décadas ininterruptamente.

Convite para a exposição Cartuns Cinematográficos. 1994


Abaixo, matéria sobre a exposição "Cartuns Cinematográficos" publicada na Folha da Tarde em 30.9.1994.


RIO VÊ A OBRA DE LUIZ SÁ PARA O CINEMA 

Quem conhece apenas as histórias em quadrinhos de Luiz Sá terá uma agradável surpresa ao visitar a exposição Cartuns Cinematográficos, inaugurada ontem no na Galeria Sérgio Milliet, no Rio. A mostra comemora o 55º ano do aparecimen­to dos cartuns do artista em cinejornais brasi­leiros, reunindo 90 trabalhos, en­tre originais, reproduções foto­gráficas e carta­zes. A ligação do cartunista com o cinema não pára por aí.

Além de ter feito um desenho animado, que também será exibido na exposição, Luiz Sá é o autor do bonequinho de críticas cinematográficas do jornal O Globo, que até hoje indica a cotação dos filmes em cartaz.

A primeira vez que um cartum de Luiz Sá ilustrou um ci­nejornal foi em 1939, em O Globo Esportivo na Tela. Os originais desses cartuns, que sa­tirizavam as notícias sociais, políticas e esportivas veicula­das nas telas podem ser vistos na exposição. Reproduções fo­tográficas dos cartuns apresen­tados entre as décadas de 50 e 60 em Esporte na Tela e Notí­cias da Semana, jornais cine­matográficos da Atlântida, também estão na mostra.

Uma das pre­ciosidades da ex­posição é a exibi­ção em vídeo de uma cópia do se­gundo desenho animado de Luiz Sá, Aventuras de Virgolino, da década de 30, que se acreditava perdida e foi en­contrada este ano em acervo particular. Serão exibidos também em vídeo um documentário sobre o artista e de­poimentos do cartunista Cau­lus sobre Luiz Sá. Cartazes de filmes publicados nos anos 40 na Revisia da Semana e Careta, caricaturas que fez para a revis­ta Cinearte e alguns originais dos bonequinhos cinematográ­ficos do jornal O Globo também podem ser vistos. Luiz Sá, mor­to em 1979, foi o único carica­turista do País a realizar car­tuns para cinejornais.

Roberta Jansen/AE

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